Peles Fotográficas
Quimigrama sobre rolo de papel fotográfico
Dimensões variadas
2004
Na série Peles Fotográficas, o trabalho de criação artística procurou revelar as potencialidades do suporte fotográfico analógico , para além da câmera escura, através da utilização de diversas fontes luminosas e químicas que atuaram diretamente sobre o papel fotográfico, provocando diferentes tipos de marcas, como numa pele . As químicas utilizadas no momento da revelação tiveram um novo papel, agindo como pigmentos. Roupas - banhadas em revelador fotográfico - deixaram suas marcas nas superfícies sensíveis.
Cezar Bartholomeu
para a Exposição Peles Fotográficas
Ateliê da Imagem
A necessidade expressiva, embora possua limites em sua potência, não possui uma direção predeterminada, e a análise destes relaciona diretamente à situação biográfica do artista sua potência artística. No entanto, deve ser dito que essa exteriorização sem direção, para a arte, é uma qualidade inestimável, na medida em que pode fazer o artista constituir ou ocupar campos impossíveis para o especialista, campos desertados pelo desejo de 'acertar' e resolver o problema da arte transparentemente. O artista, ao contrário, vive na aesthesis e trata do problema da vida, incluindo aí o da arte.
A rivalidade entre pintura e fotografia no Brasil nunca foi historicamente potente. Mas ainda que pretérita, tal rivalidade ecoa no globalizado esvaziamento de um campo híbrido coibido, seja por teoria ou sistema da arte, que apontam em uma e em outra aspectos domesticados. Quem pode saber?
O fato de que Claudia Mauad opere nesse campo a desterritorializa. Sua obra se adequa e se entrega a esse e outros paradoxos no desejo de tornar seu e nosso esse território. Aí, o que desejamos testemunhar é justamente sua entrega contra essa adequação. O segredo é que na entrega todos esses paradoxos nos são revelados como experiência do ser, tanto como conhecimento da arte; na adequação esses são operacionalizados esteticamente.
A presença do gesto pictórico na fotografia é claramente obsessivo, mas a obsessão se organiza freudianamente como um exercício. Exercício cujo fim, romântico, não é propor uma nova solução de forma, mas reiterar o problema que concerne à vida infantil, à família, à maternidade. Na proporção inversa desse simbolismo encontramos variações passíveis de repetição infinita - pretos, dos quais se retraem cinzas, brancos que se sujam com o olhar, ocres que se reforçam com a ação da luz, cinzas marmorizados que denotam o excesso e a incerteza; as cores surgem contra as formas em uma imperfeita modelação - as imagens fotogramadas pelo contato direto com a química são, ao mesmo tempo, reveladas e destruídas nessa superfície e denotam que os objetos tematizados, bem como a fotografia, à qual finalmente remetem, jamais serão resolvidos, ainda que possamos, a partir de sua multiplicação, reconstruir estes objetos prosaicos. Sobretudo, o que podemos deduzir é que, tanto quanto exercício da forma fotopictórica, as múltiplas variações constituem no espaço, metonimicamente, uma duração puramente mental do ser que guarda todos os seus estados como presentes, e, assim, a própria exposição se entrega como memória.
Crítica Peles Fotográficas Elvira Virna
Jornal do Brasil 17 Nov de 2005
Claudia Mauad me fez pensar em literatura. Algo na maneira como cria suas imagens fotográficas. Ela pega uma coisa real, impregna em uma química que fará ressaltar detalhes, borrar outros e transporta aquilo para o papel. Depois deixa de molho por um tempo e o que sai é a presença de uma ausência, uma semiótica que será sempre, sem saída, de morte.
Ela pega vestidinhos de boneca, camisolinhas de criança, embebe em revelador, põe no papel fotográfico de grandes dimensões estendido no quintal da casa dela. Quando tira o tecido, sob o sol, ela tem a impressão, em tamanho 1:1, do que foi posto. Pincela o fixador. Lava com a mangueira. Pendura. Às vezes faz o contrário, embebe no fixador e aí o preto será o entorno da coisa, que ficará de um branco meio antigo. E, outras vezes, mistura, ao embeber os tecidos, fixador e revelador. O tom será então meio rosado, meio sépia, em um ressurgimento de um rubor ausente, na face presente do papel.
Está no Ateliê da Imagem, na Urca, até janeiro.
Em Conceito de Iluminismo, Adorno e Horkheimer denunciam a racionalidade ocidental, capitalista e industrial, incapaz de trabalhar com a diferença na sua busca pela eficiência.
Claudia Mauad também dá as costas ao produto industrial do qual sua arte deriva. Não trabalha com câmeras digitais. Aliás, não trabalha com câmeras. Ela parodia a fotografia em um trabalho que poderia ser considerado pintura. Em vez de tintas, químicas de sensibilização à luz. A própria luz, em vez das cores oriundas de seu espectro visível. É paródia não só porque Claudia Mauad caçoa dos progressos tecnológicos de sua área ao suprimir a câmera como também caçoa do objeto retratado ao pôr seus vestidinhos em pose. As roupas posam, apontando para um ridículo de quem não está lá.
Ela trabalha dialeticamente com a imagem, que é alçada ao posto de co-autora dela mesma - na produção do não-controlado. E ela destrói, deste modo, uma percepção enrijecida do que seja a representação realista. É realista. É a própria coisa, ou pelo menos seu vestígio, sua sombra. Mas estamos aqui na metonímia e não na metáfora.
A escritora portuguesa Dulce Maria Cardoso, autora de Campo de sangue, também escreveu Os meus sentimentos, ainda inédito por aqui . Neste livro, uma mulher morta fala de sua vida e é uma vida ruim, monótona, sem emoções, prazeres. A morte - um desastre de carro - em compensação é vivíssima. Todos os sons, tatos e visões que lhe passaram despercebidos até então são notados e apreciados.
A apresentação da exposição Peles fotográficas é de Cezar Bartholomeu. Ele diz que a imagem na obra de Claudia Mauad, ao ser criada pelo contato direto com as químicas de sensibilização fotográfica, é revelada e destruída ao mesmo tempo. Diz também que este vestígio do real mantém seus vários tempos no presente. Com isso, o título da mostra adquire um novo sentido. Se pele é a superfície e se o presente é o que vale, Claudia Mauad, assim como Dulce Maria Cardoso, contorna qualquer misticismo.
Ambas fazem uma narrativa que inclui um passado instantâneo, presentificado pelo trauma de uma luz intensa. No romance de Dulce, a luz era do carro em sentido contrário. Em Claudia é a do sol a queimar o papel. E pele, tanto em uma quanto em outra, é a superfície que não se separa, faz parte, concretamente, do que é. Ou foi e continua sendo.